Argumento para um sertão antropofágico cyberpunk
Arquivo de texto postado no Medium em Oct 27, 2022
Argumento para um sertão antropofágico cyberpunk
As histórias de São Paulo, de Salvador, de Recife, de Nova York, do Brasil, da França, da Rússia e etcetera são conhecidas por muitas pessoas. Existe sempre alguém disposto a descobrir novas coisas sobre essas cidades, seus pátios e colégios. Aqui levanto a já esperada e clichê equivalência: e a nossa história?
E as histórias das pessoas simples que constroem todos os dias esse país e são obrigadas a aprender a história de grandes cidades que, as vezes, nunca chegarão a ver? Se somos todos iguais, porque nem todos entre nós têm uma história contada?
O valor prático disso é que existem elementos da agricultura cabocla ou como chamam “agricultura de subsistência” e dos pequenos produtores que é repassado apenas de forma oral enquanto na escola local se estudam as agriculturas de outros países.
Falo de cultura sem pretensão acadêmica, mas de uma prosa entre amigos, entre familiares ou o que eu tenho repetido de forma incansável ao longo do projeto que eu deveria estar agora inscrevendo na famigerada lei rouanet: a memória das histórias contadas pelos idosos antes do Lucas Neto lhes roubar a audiência.
Existem muitas Marias e Joãos pelo sertão e eles conhecem plantas, cobras, rezas e lendas que precisam “ganhar o mundo”, são histórias de lugares pequenos e das pessoas simples mas que também tem uma história.
Existe uma língua que escorre pelos recantos mais escondidos do Brasil carregada de poesia e essa língua merece ser apreciada por quem estiver disposto a conhecer o coração sertanejo.
Se ao falar da nossa aldeia falamos de todo o mundo e se o inconsciente se expressa através da linguagem, então quantos significados carrega a expressão “olhos d’água” que identificava as fontes de água que escorriam no barro durante uma seca prolongada e, depois de organizadas por quem precisava dar de beber a sua família, entregavam uma água incolor, inodora e insípida para tantas pessoas?
O sertão já não vê mais as mulheres carregando um pano em forma de círculo pra equilibrar melhor na cabeça as modernas latas de querosenes posteriormente substituídas por baldes de margarina reempregados em baldes d’água que, por sua vez, substituíram com melhor ergonomia e durabilidade as demodês cabaças. Mulheres e homens anacrônicos que buscavam águas em latas de querosene no mesmo ano em que o Steve Jobs e Mc’Donalds já vendiam seus mac’s em shoppings há alguns quilômetros daqui.
Mas vão-se os Fernandos Henriques e ficam-se os Luises Inácios.
Depois da luz para todos os dog days já are over faz é tempo. Porém junto com eles foi a prática de ensinar às rencas de meninos e meninas os lugares mais de encontrar água limpa na natureza, de plantar e colher as cabaças e as práticas que faziam deste produto vegetal um utensílio com versátililidade capaz de dar voadora em qualquer tupperware por aí.
Talvez seja só um delírio hipster de uma millenial desejar que esse conhecimento não se perca mas pretendo correr esse risco de ser cringe porque tenho fé na estética do Jesus holográfico que minha avó trouxe de Canindé e que se eu olho de outra perspectiva vira São Francisco. NFT é o meu pau de Barbalha feito nude, meu chapa. Pego minha foto no cavalinho cenográfico de Padre Cícero e vou embora.
Hoje a água encanada ajuda no assentamento de colunas mais retas e as cabeças sem rudia têm mais tempo pra pensar no que for que lhes passar. Cabeça vazia numa comunidade agrícola com a mínima segurança hídrica e educacional pode virar horta hidropônica de filosofia.
A gente, toda gente, quer falar. E digo mais: a gente está falando. E digo mais ainda, a gente tem muito pra falar. E falamos enquanto nos despimos como camgirls desses estereótipos que pessoas que moram nas cidades que estudamos sem conhecer formam de nós sem nos conhecer e depois tentam nos enfiar goela abaixo como sendo a “cultura nordestina”, KKK. Só rindo desses velhos que houvem jovem klan.
A tomada da bastilha de cultura nacional vem acontecendo devagarinho porque se tem uma coisa que o sertanejo sabe ter é paciência de plantar e colher.
Nós somos o que somos: dinâmicos, diversos, adaptáveis, modernos, alegres, fortes, não reverentes aos antinós e reverentes ao nosso passado, legado e pulsão de vida. Muito orgulhosos desse novo sertão tecnológico cultural antropofágico. Eu poderia citar 13* artistas pra embasar tudo isso mas agora eu tô meio aperriada pra concluir.
Até os descaminhos que fomos obrigados a caminhar nos ajudaram a construir nossa história. Nossa língua sertaneja é o retrato desse trisal da língua de Portugal e sua melancolia, da língua nativa e sua irreverência e da língua africana e sua musicalidade. Nossa língua expressa nossa história, nosso conhecimento, nossa psiquê enquanto faz sorrir e chorar. A vida no sertão também tem poesia e cultura e uma oralidade tão rica que nem todos os reais vivos da milícia poderiam comprar.
Nada de ode ao passado e nem exaltação das dificuldades vencidas, só a afirmação orgulhosa de que a nossa memória pode, deve e merece constituir o presente deste Brasil que ressurge da brasa sem causar apagamento mesmo onde o vento faz a curva.
A nossa história também merece entrar pra história.
*13 neles.
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