Maria Carolina de Jesus: a história de uma escritora brasileira

 Arquivo de texto postado em Jul 21, 2020 no Medium


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Maria Carolina de Jesus: a história de uma escritora brasileira

Está na hora de colocar a Carolina no lugar ao qual ela lutou arduamente para chegar. Carolina é escritora.

Pensar nela ressaltando apenas os lugares onde morou e a profissão que exerceu para sobreviver é deixar de louvar o esforço e o caminho que ela percorreu para realizar os seus objetivos de publicar seus escritos e educar seus filhos.

Além de escritora, Carolina é denuncia sobre como o acesso a produção de conhecimento no Brasil era caro e difícil em 1950 e como continua sendo para membros de classes menos favorecidas.

A autora ainda é vítima do preconceito velado disfarçado de assombro pela capacidade de escrita.

Quando apenas a parte privilegiada da população produz o conhecimento e pensamento difundido na mídia, nos livros e ensinado nas escolas, o que sobra é uma sociedade inteira que reproduz os mesmos preconceitos.

Maria Carolina de Jesus ainda hoje é tratada como aberração literária ou exemplo de como a meritocracia funciona, uma flor-de-lotus nascendo no lixão. Essas abordagens e armadilhas de linguagem continuam a deslegitimar a capacidade intelectual da mulher que contra todas as adversidades conseguiu ser uma escritora com livros publicados.

Nas críticas de jornais e vídeos espalhados da internet raramente se celebra a enorme e a perseverança de Carolina para finalmente poder entrar nas bibliotecas que tanto amava como escritora e ainda vestida com suas roupas cotidianas e falando da sua realidade nesse ambiente elitista que é o mundo dos livros.

Enquanto brasileira e mulher me dói a forma como os brancos, que antes negavam o acesso de Carolina a esses círculos, contam hoje a sua história. Ora Carolina é apresentada como obra da visão assistencial sensível do jornalista Audálio Dantas, ora como obra de um bom patrão médico que a deixava ler seus livros. Sempre como um caso raro. Raramente como a leitora voraz e detentora de conhecimento social cultural e empírico sobre a realidade do Brasil.

Nas entrelinhas dessa percepção, ainda ouvimos o grito aflito do branco burguês que compõe grande parte da “intelectualidade” no Brasil, agora um pouco menos branca que em 1950, mas ainda como os vieses da visão de superioridade branca trazida pela invasão européia armada. Como pode um pobre ter cérebro? Como um pobre pode ser capaz de escrever, ainda mais tendo a pele negra? Ainda mais sem ter muita escolaridade e tendo que viver do nosso lixo? Como é possível que uma pessoa como ela, de quem tentamos roubar até a dignidade, ainda seja capaz de se erguer e criar uma obra que denuncia a hipocrisia disfarçada de excesso nas salas de estar da casa grande mas revelada em seus rejeitos nas senzalas e quartos de despejo. Coisas para serem escondidas e descartadas? Entre essas coisas, muitos humanos.

Subliminarmente a surpresa e a singularização com a qual Carolina de Jesus ainda é tratada nos relata que ainda há essa dúvida quanto a capacidade de pessoas não brancas realizarem a literatura.

Admitir a produção de conhecimento e história por pessoas não-brancas é reconhecer que o que legitima a colonização branca nunca foi o intelecto superior e sim a capacidade doentia de subjugar humanos iguais, os matar, roubar e escravizar. Admitir é olhar para as mãos e enxergar a verdadeira herança européia: o sangue dos povos considerados inferiores.

Em 2020, passamos pelo auge da contrarrevolução que tenta a todo custo fazer o país retroceder pra o lugar de onde mal saiu e desfazer o pequeno (porém efetivo) trabalho de dar assentos aos pobres nas universidades.

No nosso país, as profissões de classe média sempre tiveram uma cor esperada e cobrada sutilmente nas entrevistas de emprego. Essa não era a cor de Carolina. Mesmo assim, Carolina sabia que era escritora. Enquanto a realidade de Canindé, ao mesmo tempo que pedia vozes de denuncia, a tratava como alguém destinada a uma vida de eterno subemprego e sofrimento da fome, a mulher insistia em escrever e acreditava muito na sua escrita.

Um adorno momentâneo das mesas da elite paulista, mastigada pela camaradagem filantrópica e logo lançada de volta ao lixo. Maria Carolina de Jesus é um exemplo sim, de como essa sociedade não nos reserva lugar na sala e que mesmo com todo esforço ainda nos dão uma etiqueta de validade bem curta. A escritora não cabia nesse rótulo e foi bem mais, foi um alicerce negro para todos nós que estamos fora da mesa branca.

A história de Carolina dói porque nos faz pensar em quantas mulheres sucumbem a visão brasileira que reserva para nós o lixo e o sujo do mundo, mas também é um alento para quem observa a força de vontade hercúlea dos que conseguem fugir do destino escrito por uma sociedade eternamente colonial que ainda replica em 2020 os esteriótipos trazidos pelas pessoas que roubaram a terra de alguns de nós e a outros roubaram de suas terras.

Ilustrando com as palavras de Krenak - se você é branco, possivelmente seus antepassados são ladrões. Ou com as palavras da militância negra: você branco muito provavelmente desfruta de privilégios construídos na escravidão. Dói mas é verdade e quanto antes essa verdade for admitida, menor será a fatura no futuro.

De Carolina em Lelia Gonzales, de Sueli Carneiro em Djamila Ribeiro, de Ailton Krenak em Dinamam Tuxá, vamos retomando a nossa autonomia sobre nosso destino através do letramento. O orgulho que Carolina de Jesus tinha de sua negritude mostra que o conhecimento fortalece a nossa identidade, ancestralidade e a nossa cor. A nós, carolinas e carolinos, cabe continuar lutando.

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