Gilmar de Carvalho, mestre João Pedro de Juazeiro e a arte

 Arquivo de postagem de Aug 26, 2023 no Medium



Gilmar de Carvalho, mestre João Pedro de Juazeiro e a arte

Professor Gilmar de Carvalho – Foto: Waleska Santiago/Diário do Nordeste

Levar a cor da cultura popular aos espaços de arte tão brancos é algo raro e digno de uma certa beatificação.

Exagerado, mas explico: nós pobres temos o nosso primeiro contato com a arte no espaço que nos é permitido (e financeiramente acessível) de lazer e socialização: a igreja.

Na igreja evangélica que proíbe imagens, a música evoca a cultura. As religiões de matriz africana e indígena têm as esculturas e imagens.

A primeira colonização da nossa mente vêm dessas imagens.

Em minha experiência católica, a decoração das casas do sertão é muito bonita e colorida misturando os santos às fotos dos familiares.

Exposição Retratos de Meste. MCC Dragão do Mar.

As imagens vistas diariamente nos ajudam a compor as parábolas que nosso cérebro usa pra nos contar o mundo.

Cresci vendo santos brancos e com aparência anglo-saxônica. Bem diferentes dos meus traços pretos ameríndios.

As cores pastéis também não combinavam muito com meu sertão de cores naturalmente saturadas. Aparentemente, eu estava bem longe da santidade.

A produção de imagens de arte, até agora, foi um latifúndio branco com uma ou outra exceção. O mundo parecia apenas branco pra quem o via pela perspectiva da arte.

Os corpos pretos estavam ali mas sob o viés do exótico, do que não compunha a norma. Um ou outro preto subia uma grande muralha para acessar esses espaços mas sempre sob esse viés.

O próprio pequeno burguês Basquiat entrou no personagem que a branquitude legitimadora de arte oferecia, conseguiu acessar os espaços de arte das galerias e, de dentro, questionou esse personagem com a sua obra.

Abdias do Nascimento também conseguiu a tão almejada legitimação. Mas os papéis na arte ainda são comuns e o rótulo de arte naif ou nordestina só começa agora timidamente a ser questionado.

Na produção de cena da tv, os atores do nordeste ainda ganham o papel de porteiro ou trabalhadora doméstica ou são caricaturados ao extremo.

Ocupados nos ônibus lotados, em trabalhos que pagam um salário mínimo sem muita chance de mudança de casta pela rotina feita e pensada para aprisioná-lo na cadeia do trabalho e (pouco) consumo, muitos artistas pretos nem ousam buscar essa legitimação.

Como produzir arte nas duas ou três horas de dia que sobram para viver depois do trabalho. Como fazer essa arte chegar a quem pode legítima-la?

Mas mesmo assim os corpos não brancos produzem arte. Rabiscando, compondo, cantando.

Pra quem não vem das classes pequeno burguesas, sonhar em participar de espaços de arte é ousado demais. Primeiro porque isso é sonho e o sonho rouba tempo de trabalho.

Segundo porque às vezes não há nenhum precedente próximo. Como legitimar um sonho sem ninguém próxima que tenha feito nada parecido? Mais fácil seguir puxando a roda esmagadora do cotidiano.

Na fábula da formiga e da cigarra, fica clara a lógica da oposição entre trabalho e arte, mas a cigarra também está trabalhando, ela só não tem uma previdência social estruturada. Isso te lembra alguma realidade?

Voltando ao assunto, nos lares mais antigos existem fotos com técnicas de pinturas compradas dos vendedores de retrato que andavam pelos lugares mais distantes dos municípios mais distantes das grandes capitais.

Minha percepção de arte e de mundo sempre vai carregar os vestígios do meu inconsciente todo decorado desde a minha primeira infância com parábolas e imagens de inspiração renascentista e europeia católica. Por isso é difícil pra mim não ver o mundo através da iconografia sacra.

Por isso, ontem, na abertura da exposição Gilmar Presente, na Escola Porto Iracema das Artes, tive a impressão que os amigos do professor Gilmar o estavam beatificando ou o encantado, como disseram. E além da boa vontade com os entes, havia um real amor.

E ao saber do papel dele no reconhecimento de artistas populares desde muito tempo antes de decolonialidade ser uma temática com tanto espaço nas discussões, compreendi a grandeza da figura do professor tão boa praça e tão citado pelos intelectuais e pesquisadores.

Ver o mestre Joao Padro de Juazeiro tendo acesso ao espaço de arte pelo mérito do seu trabalho e de sua família.

E ver a família dele trazendo cor e diversidade ao expor obras nesses lugares, me enche de esperança.

A própria Escola Porto Iracema das Artes e outros espaços do governo do Estado no atual momento da arte cearense pós-golpe.

Xilogravura do Professor Gilmar de Carvalho feita pelo Mestre João Pedro de Juazeiro

Penso em como quando um artista preto ameríndio ganha espaço para expor sua visão de mundo através da arte, ele a recoloniza e transforma em uma arte com a nossa feição.

O professor Gilmar contribuiu bastante pra esse mundo mais diverso no qual eu caminho e no qual vivemos sobre e recolonizamos os espaços. Ao questionar a regra e ao agir.

Entendi que a academia do Gilmar de Carvalho conseguiu transformar verbo em carne, carne literal de sustento de artistas populares mas jamais sem um muitíssimo trabalho dos artistas. Poucos intelectuais conseguem isso.

Na minha sonholândia, artistas, intelectuais e produtores pretos ameríndios e aliados abrem espaço pra outras parábolas e imagens de outros artistas pretos ameríndios.

Essa classe consciente de que ocupa um campo de arte, mas também um campo de guerra.

E que cada um de nós que ocupa esse espaço produz poesia. Uma poesia que cura, mas também tem a força de uma bala.

Essa guerra é para que nenhuma visão sobreponha a outra, mas para que elas dialoguem.

Se hoje tento colocar novos santos no meu inconsciente para compor novas narrativas e imagens, as xilogravuras do mestre me ajudam bastante.

A arte dele tem a dureza da madeira, é cortante como um cinzel, mas fala do amor da amizade, ao falar do professor que também era pra ele um amigo, ou um pai artístico. Talvez, um pai de santo que guia os passos de um filho para o caminho da luz.

Professor Gilmar estava, de fato,muitíssimo presente.

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