Bonito pra chover


Ela chegou com calma, sentou do meu lado
e me tocou sem medo e sem nenhum pudor.
Ela olhou pra tudo que eu queria que alguém olhasse
e também desviou o olhar das coisas que eu queria esconder.
Ela me ensinou a receber carinho e me deu tanto amor,
que as vezes eu até me afoguei nisso que transbordava dela pra mim.
Logo eu aprendi a nadar nesse sentimento e a mergulhar nela,
principalmente, nos dias quentes do nosso eterno verão.
E quis ser terra pra ela se fazer rio
e deslizar devagar sobre todas as minhas curvas,
quis esquentar pra que ela fosse chuva
e assim voltar pra mim, trazendo vida e alento.
Mas foi ela que se fez terra pra mim
e quando não a vejo, vago sem forma, ao sabor do vento.
Nuvem cheia, esperando encontrar onde chover.
Eu esperando que a gente se encontre pra encontrar meu sentido em você.

o gado

29 anos de dias e horas complicadas, algumas portas abertas pra outras tantas portas e caras fechadas.
Com o passar do tempo você se torna cada vez mais igual a massa de gente na fila da vida.
Preso às obrigações, aos começos e finais de mês.
As vezes as recusas e portas fechadas te cegam pras abertas.
Os dias, as propagandas de remédio e financiamento e o modus operandi da vida não variam muito.
Pouca gente nada contra a corrente.
Pouca gente faz diferente dos outros.
As pessoas são guiadas por medo e vivem os 70 anos que têm fazendo o mesmo que todos já fizeram e abafando o tédio com alguma droga.
Mas até isso, várias pessoas já disseram.

noite estranha


Eu vou colocar umas flores e talvez uns incensos ou velas,
eu posso acrescentar umas cortinas,
eu posso pensar em um cheiro que combinasse com a forma
que eu queria que você tivesse me olhado aquela noite.
Cheiro de fêmea.

Eu posso aumentar e diminuir o brilho nas tuas pupilas gigantes
e o fogo das velas refletido nelas.
Eu posso acrescentar o frio que eu teria sentido na espinha
e a mistura na minha barriga com o calor que subiria pelas minhas pernas.
 Eu posso imaginar a textura do seu lábio inferior,
a temperatura e até o gosto de terror que o Chico Buarque cita na música.

Eu posso fazer o que eu quiser
por que na minha imaginação toda a vida funciona da forma ideal,
os beijos que devem ser dados se dão
e os amores que devem ser feitos se fazem.

Por que na minha mente
aquela fração de segundo onde nascem beijos e até universos
dura o tempo que eu quiser.

Tempo




Parece que o tempo conversa comigo. Parece que por minha lentidão parecer com a dele, ele me aceita e me revela alguns de seus segredos.
A gente se abraça e acompanha passando um pelo outro e também pelos outros. A gente briga, eventualmente, então esquecemos as outras bondades e só olhamos o mal que nos fazemos.
Depois a gente se perdoa e se abraça e eu o beijo forte e lento e tento agradecer por todas as coisas maravilhosas da vida, por todo o carinho, gozo e sorriso que ele me proporcionou.
Para alguns é tempo perdido, para mim é encontro com o tempo.
Nada mais bonito que admirar o doce balanço do tempo a passar e me encontrar em suas curvas.
Tempo, desculpa se as vezes eu cego diante dos teus contratempos, me ama nos dias dias azuis e cinzas que eu também vou te amar pelo tempo que te tiver.

Torna-te o que tu és!

Todas as minhas teorias de vida dançam uma ciranda, desconexas e conexas, se completando ou contradizendo, pra que preciso de tantas? Sou levada pelas águas desse rio que não sei onde acaba, as ruas são o leito desse rio, os carros e os aviões são a correnteza, vou escorrendo pelos dias. As minhas verdades, cheias de razão são tão cansativas, com todas as suas explicações. Os meus medos são tão rasos. Me escrevo para me desentender, pra me confundir, pra desabafar. Estou cansada dos meus contrários, de olhar os meus abismos. A vida é mesmo essa corda bamba onde se deve sempre parar no meio, mas o meio é tão sem graça. Quero ir nos extremos.

Precisa chover

Precisa chover nessa terra seca, a gente reza a Deus, a gente dança e chora, a gente se muda e chora e se chorasse um pouco mais haveria um açude de água de lágrima.

A terra é vermelha ou preta, a terra voa com o vento na nossa cara e desenha a lágrima, a lágrima igual a do gado deitado sobre o solo quente, olhando pra gente chorando embaixo do céu azul e laranja.
Passam as nuvens pequenas lá em cima, elas tem um pouco de esperança, esperança que passa e não chove.
O céu azul é testemunha da nossa prece calada, olhando pro céu, procurando o pai, pra onde ele foi e porque levou nossa água? E assim passam os anos, a terra, gestante e magra, vai parir escassas sementes para alimentar nossos filhos, nós e a terra. Nossos filhos vão crescer ali, embaixo do mesmo sol, e o tempo vai passar junto com o vento e a poeira. Pra quem sabe um dia o paraíso a gente encontrar, espalhado nessa terra, verde, molhado, com baijas de feijão e cachinhos de arroz. Deus voltou e trouxe a água.



Coragem




"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem."



Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa.

Desgramática



Essa história mal escrita me tirou a concordância e a regência. Dei a ela todos os meus adjetivos. Fiquei página em branco, voz passiva, sujeito indeterminado, um travessão mudo, artigo indefinido, verbo regular, deixei de ser.
Quisera ser feliz, quando me imaginava primeira pessoa do plural, pretérito mais-que-perfeito. Hoje reaprendo a viver e sofrer infinitiva e no singular, enxugando as virgulas do meu rosto.
Reescrevendo as orações do passado sem o teu pronome de tratamento eternamente oblíquo. Tentando ler a vida além do ponto final.
Preciso de uma borracha pra apagar a memória, novas regras de acentuação, enxugar os períodos em casa, parar de acreditar nos amores-perfeitos com ou sem hífen; conhecer novas línguas e embarcar em algum realismo fantástico.

O que acontece se eu apertar esse botão vermelho? O.o


Um botão vermelho é sempre o botão vermelho e quem teve coragem de apertar o botão vermelho estrategicamente colocado na Flemish Square (ou praça onde realmente nada acontece) na Bélgica, se deparou com essa ação genial para lançar o TNT HD Bélga.
Obrigada Nossa Senhora da verba publicitária e Nossa Senhora da Criatividade!
Tirei o meu chapéu!

Trecho do livro Budapeste



Eu era um jovem louco e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Tereza.Ao ouvir cantar Tereza, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. 

A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era meu, e foi na batata da perna de Tereza que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio, ela gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. 

Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Tereza. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom,então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava para escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. 

Toquei na casa de Tereza, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. 

Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever em suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a outras colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saiam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. 

Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa. 

Chico Buarque